Páginas

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Carta à Mãe Serra

Flávio Domênico

Daqui, fitando teu manto verde, procuro imaginar o tempo em que tu eras impoluta e verdadeiramente exuberante. Não diria uma virgem intocável, mas, preservada do funesto animal que assolara tua vida.

Na linha de um longo tempo ofereceste abrigo, sem cobrar sequer um ombro amigo. Com tua formosura embelezaste a vista de todos, sem perceber que a cegueira dos que contemplavam-te macularia tua imagem.

O sangue quente que corre nas veias, o mesmo que dá a vida, compilou friamente argumentos para abusar de tua dádiva. Foste a primeira a gritar por amparo, mas a lânguida surdez dos que conheciam-te esmorecera tua voz. Vieram as máquinas e destituíram-te de vez do cargo de maestrina de uma sinfonia natural que encantava os ouvidos. Deram lugar ao som bizarro de motores insanos que devastaram teu corpo sedento por justiça.

Daqui, fitando teu manto verde, imagino as noites de agonia, tua sofreguidão desejando o dia. Feriram-te nas entranhas e foram desafiadas as leis que podiam impedir tua degradação. Fizeram com que todos acreditassem que esse mal era necessário. Foste consorte do senhor progresso e por ele abusada à revelia. Tua redenção tornou-se devaneio de uma minoria, sufocada pela coragem tardia. Teu nome um homônimo de tua ruína. A mesma serra usada para referir-te, ceifara o verde de teu seio e, de um curral de cultura, brotou a ignorância de uma geração futura.

Um dia Curral outrora Serra, o certo é que teu abraço nos cerca. Talvez, tua imagem, hoje símbolo eleito de uma cidade, seja o reflexo de uma história que escreve o descaso de uma prole soberba e ao mesmo tempo faminta por um bem estar.

Reverência mãe Serra do Curral, que, contudo ainda me abraça. Hoje minhas lágrimas são incapazes de fertilizar teu colo seco e dilacerado. Volto meus olhos a ti e, incapaz, peço desculpas.

3 comentários:

Unknown disse...

É um fato, não tem como negar. A discussão sobre a linha que o progresso tem que tecer para garantir o consumismo e os lucros exorbitantes são retrato de uma ignorância sem precedentes. O que se vê em produto é a modificação grotesca da paisagem natural.
E apesar de estarmos presenciando tais modificações no tempo e na dinâmica dos fenômenos, as bolsas não param!
Ainda fazemn Conferências como a de Estocolmo que, se pra quem mais poluía o planeta não valia de nada?

Flavito, suas desculpas no final me remete a pensar: Somente o fato do ser humanopoder respirar, sería passível de pedir licença e perdão!

Anônimo disse...

LINDA CRÔNICA!!! Amir

Stefan Dias disse...

Poeticamente muito bonito sem sombra dúvidas (parabéns Flávio). A respeito do teor ideológico, concordo e discordo ao mesmo tempo, explico:
O minerador não pode ver dinheiro que vende até a mãe, o ambientalista não pode ver buraco que parece que apanhou da mãe. A mineração é indispensável (ela está presente em tudo - sem ela viveríamos uma vida completamente miserável) mas já passa da hora de de administrarmos melhor nossos finitos recursos e mudarmos esse modelo fracassado atual. Mas vou além nesta questão, o problema principal somos nós mesmos, e a nossa baixa moral (moral não no sentido de auto estima mas de valores)Finalizando:
ENQUANTO NÃO MUDARMOS NÓS MESMOS NÃO MUDEREMOS O NOSSO AMBIENTE EXTERIOR "revolução interior é a única saída, volte para si e comece a mudar" Stefan Dias (trecho da música imaginário)